Fusão a frio - confusão atômica

Cientistas provocam reações explosivas ao anunciar o segredo da produção de energia nuclear limpa, barata e inesgotável

Fonte - isto é

A vida na Terra seria impossível se o Sol não estivesse lá em cima, emitindo raios de luz e calor que levam apenas oito minutos para atingir a superfície do planeta. O que originou essa gigantesca esfera gasosa fervente, de diâmetro um milhão de vezes superior ao do globo terrestre, ninguém sabe. Mas o que acontece em seu interior já foi decifrado. O superaquecimento faz com que átomos de hidrogênio – um dos elementos mais abundantes na natureza – colidam com ferocidade o tempo todo e acabem por se fundir, dando origem a explosões de energia. Imitar esse fenômeno conhecido como fusão nuclear para obter uma fonte de energia inesgotável sempre foi a pedra filosofal da física. Na semana passada, a revista americana Science publicou o trabalho de um time de pesquisadores que assegura ter chegado perto desse sonho. Temerosos diante de um eventual fiasco, alguns especialistas esbravejaram dizendo que a publicação seria, no mínimo, prematura. 

A promessa da fusão nuclear é um dia poder iluminar as cidades com a força cósmica das estrelas, sem a poluição do petróleo nem os danos das usinas nucleares, que produzem lixo radioativo. Os autores da façanha pertencem ao laboratório de Oak Ridge, do Instituto Politécnico Rensselaer, ambos nos Estados Unidos, e à Academia Russa de Ciências. Como objeto de pesquisa, eles usaram a prosaica acetona com que se tira o esmalte das unhas e um gerador de ondas sonoras do tamanho de três xícaras de café empilhadas. As ondas chacoalharam de tal forma as bolhas de ar presentes no líquido que elas atingiram temperatura semelhante à do Sol, de 10 milhões de graus Celsius. 
Durante a experiência, os átomos de deutério, um primo do hidrogênio, inserido na acetona, aderiram uns aos outros e liberaram energia (leia quadro). A própria direção do Oak Ridge desconfiou do resultado espetacular e pediu a um segundo grupo que refizesse os testes. Bastou o feito não se repetir para produzir uma reação de impacto nuclear. A disputa por reconhecimento, dinheiro e pioneirismo, no meio científico, é cruel e tem como tempero a inveja, a precipitação e o ceticismo. As controvérsias aumentam quando se trata de um experimento que, se confirmado, garantiria o Prêmio Nobel. Há outro motivo para redobrar a patrulha nessa fogueira de vaidades. Quer-se evitar agora o mico de 1989, 

quando os físicos Stanley Pons, da universidade americana de Utah, e Martin Fleischmann, da britânica Southampton, alardearam a “descoberta do século”: a fusão a frio, assim batizada por se realizar à temperatura ambiente. A dupla inseriu condutores de corrente elétrica no metal paládio, mergulhou-o na água e o conectou a uma bateria de carro. A descarga elétrica teria atraído os átomos de hidrogênio da água ao paládio, emitindo energia. Ninguém foi capaz de confirmar o experimento e tudo indica que houve erro de interpretação. A energia seria resultante de uma reação não relacionada com a fusão atômica. Numa tentativa de repetir a fusão a frio em laboratório, não se conseguiu detectar a presença dos nêutrons livres, as partículas que se desprendem do núcleo de um átomo – o menor elemento de uma substância – e são um dos indicativos de que houve fusão nuclear. O mesmo pode ter acontecido com o estudo divulgado na semana passada. O físico Dan Shapira, do mesmo laboratório de Oak Ridge, suspeita de uma contaminação de nêutrons já presentes no ar, ou na acetona, que poderia mascarar o resultado. Os autores se defendem. “A incerteza é comum quando um novo fenômeno é observado. Em poucos meses teremos mais respostas”, assegura Rusi Taleyarkhan, um dos participantes. A desconfiança não ofusca o fascínio do experimento. Os cientistas teriam obtido a fusão nuclear a partir de um fenômeno natural inexplicável: a sonoluminescência. Ela consiste nos flashes de luz azulada que as bolhas da acetona emitiram ao serem agitadas pelas ondas sonoras. “Quando a proa do navio corta a água, ela também produz sonoluminescência. Nas noites escuras de lua nova, pode-se ver uma espuma de estrelas sobre o mar”, descreve o físico chinês King Tsui, da Universidade Federal Fluminense, do Rio de Janeiro, um dos poucos brasileiros a estudar a sonoluminescência. Como o combustível para a fusão nuclear é o deutério, o primo do hidrogênio presente na água do mar, a energia gerada pela fusão nuclear seria praticamente ilimitada. Poderia aposentar as usinas nucleares, onde a fonte de eletricidade é obtida num processo inverso ao da fusão, o da fissão nuclear, a mesma usada para fabricar a bomba atômica. Essa técnica consiste na cisão de átomos de urânio, que produz muita energia e também muito lixo radioativo. Que a fusão nuclear é possível, não há dúvida. Há dois projetos em estudo no mundo. No Brasil, trabalha-se com o Tokamak, reator em forma de pneu onde o hidrogênio é confinado e aquecido. O dilema é que até agora não se conseguiu produzir mais energia do que a consumida na fusão dos átomos. O trunfo da experiência com a acetona está nas ondas sonoras usadas para provocar a fusão nuclear, o que elimina a necessidade de grandes cargas de eletricidade e, portanto, de investimentos. Na opinião do físico Edson Del Bosco, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São Paulo, onde há um Tokamak em teste, ainda é cedo para comemorar. “Acelerar partículas atômicas para produzir energia é fácil. Difícil é tornar a fusão comercialmente viável”, destaca. De qualquer forma, a polêmica é o combustível que faz a pesquisa avançar.